Sobre a saúde mental de crianças e adolescentes no confinamento

Sobre a saúde mental de crianças e adolescentes no confinamento

A surpreendente reação dos mais jovens

Maio de 2020

Nesses meses de confinamento, tenho acompanhado meus pacientes e suas famílias remotamente a partir de plataformas virtuais. Nas primeiras semanas, ficou evidente a brutal desorganização das rotinas e da distribuição das funções domésticas e do ensino à distância. Porém, desde o começo, as crianças demonstraram se adaptar melhor do que era esperado. Essa não foi só uma observação a partir dos meus pacientes, mas o relato de vários colegas psicoterapeutas, psiquiatras e pediatras, além de amigos com filhos em casa.

Na experiência clínica, cada paciente traz uma leitura própria e subjetiva em relação aos eventos sociais nos quais estamos inseridos. A somatória dessas experiências singulares nos permite conceber algumas generalizações sobre como as gerações mais jovens estão lidando com esses temas. Me refiro a crianças e adolescentes que têm uma casa (ou mais de uma, no caso de mães e pais separados) com adultos responsáveis que se ocupam delas.
Entendo haver cenários diferentes desse que apresento. Situações de grande vulnerabilidade nas quais já podemos observar o aumento da violência doméstica reportada por diversas instituições ligadas aos direitos humanos. A questão, seríssima, não é o foco deste artigo.

O que me proponho analisar aqui são os efeitos de adaptações criativas e superações observadas em minha clínica, nesse período do chamado isolamento social.

Um cenário possível

No cenário mais positivo, esse primeiro tempo de confinamento, trouxe conforto para muitas crianças e adolescentes que passam muitas horas de seus dias fora de suas casas, lançados em atividades externas que demandam deslocamentos pela cidade, trânsito e correria — “Ufa! Ficar em casa, que coisa boa!” No sentido simbólico, isso representa um movimento de interiorização, recolhimento, regeneração, descanso, pausa. Um tempo maior de intimidade familiar.

Se a casa proporciona uma mínima condição para criar um “ninho”, eles irão se aninhar e desfrutar dessa pausa, que é diferente das férias. Aqueles muito agitados e sem limites, considerados hiperativos, são os que mais apresentam dificuldades de acomodação no ninho. Mesmo assim, surpreendentemente, muitos têm apresentado melhoras, pois estão menos expostos aos estímulos externos.

Já os muito introspectivos e mesmo os com tendências depressivas, para os quais “ir para o mundo” representa um grande desafio, estão sendo menos exigidos. Os adultos também estão deprimidos, inseguros e com medo, o que faz com que os jovens se sintam mais relaxados em sua condição emocional. Em geral, uma criança ou um adolescente deprimido sente-se isolado como um “peixe fora d’água” vivendo no seio de famílias produtivas cujos membros trabalham, estudam e têm vida social intensa. Por estarem mais habituados a lidar com dificuldades e sentimentos negativos do que aqueles que são pegos de surpresa pela situação, acabam ajudando e consolando os adultos e assim se sentem úteis.

Em relação aos autistas funcionais, muitos se acomodaram ao ambiente protegido da casa, relacionando-se com o exterior por meio do mundo virtual, onde se sentem mais seguros. Nós adultos também migramos para comportamentos e relações virtuais. Nossa forma de relacionamentos se tornou mais parecida com as deles.

Os pacientes com angústia de separação estão mais assegurados da presença dos familiares mais próximos. Os pacientes com comportamentos obsessivos também encontraram formas de socializar seus sofrimentos, pois agora todos passamos grande parte do tempo lavando as mãos, higienizando as compras, usando máscaras. Lavar louça junto com os adultos, nesses casos, pode funcionar como uma boa terapia.O momento propicia maior inclusão daqueles que carregavam o fardo do papel de desvio do padrão considerado “normal”.

Passos maiores que as pernas

Vivemos em uma cultura na qual a ideia de estimulação precoce pretende acelerar processos de desenvolvimento. Sempre fui contrário ao excesso de estimulação fora dos casos de crianças com algum tipo de déficit. Os pais pressionam as escolas para despejarem conteúdos “goela abaixo” nos alunos. As crianças nem acabam de absorver uma informação e já são atropeladas por outros desafios. Precisamos estar atentos para que essa fórmula não se repita no EAD (ensino a distância).

Não é apenas no nível pedagógico que a pressão pelo amadurecimento acontece. Isso ocorre também na expectativa de desempenho e autonomia. A ansiedade é um mal do nosso tempo. Crianças e adolescentes comungam conosco a sensação de estarmos sempre jogados num futuro que nunca chega. O fato de estarem recolhidos aliviou essa inquietação invasiva e perturbadora.

O tempo da criança é o tempo presente e muitas delas estão desfrutando dessa possibilidade, brincando sem preocupações e até podendo sentir tédio, o que é muito importante. Um aspecto interessante é que os púberes e os adolescentes têm relatado que estão dormindo mais tempo, de dez a doze horas por noite, o que é muito saudável, colabora com o crescimento corporal e com a fixação da memória. Também relatam aumento da ocorrência de sonhos durante esse período. Sonhar é um dado de saúde mental. Melhor ainda se os sonhos são compartilhados com os outros membros da família.

O ponto da curva

Seria importante tentarmos compreender em que etapa do desenvolvimento a criança se encontra quando é retirada do contexto social no momento de confinamento. Cada fase representa uma interrupção diferente do fluxo da vida.

Embora cada criança e cada adolescente viva essas etapas a seu tempo e de maneira particular, as categorias apresentadas a seguir servem como base de aproximação e entendimento do desenvolvimento e sua relação com a quarentena.

Bebês

Os bebês são os que menos se ressentem emocionalmente do recolhimento. O contato direto com a mãe é primordial. Porém, nem sempre as famílias
estão preparadas para se ocupar de seus bebês sem o auxílio de assistentes e de profissionais. O caos pode se estabelecer por conta da falta de recursos dos familiares em cuidar desses seres tão cheios de demandas, que vinham sendo “terceirizados”. Para mães e pais que mantêm suas rotinas de trabalho à distância, isso pode representar uma carga muito pesada. A vantagem dos bebês é que eles são grandes “sedutores” com seus sorrisos e covinhas, expressões de felicidade e satisfação, tão raras diante da dura realidade vivida pelos adultos. Trazem em suas “fofuras” um sentido para a preservação da vida e isso facilita a disposição para cuidarmos deles.

Os bebês com menor capacidade de empatia, com maiores expressões de insatisfação e dificuldade para encontrar estados de equilíbrio e bem estar terão menos chances de receber cuidados de mães e pais sobrecarregados pela realidade ao redor. Esses serão os mais afetados pela situação atual.

Infância

Dos três aos sete anos, fase do pensamento mágico, o coronavírus se configura como um personagem malvado, nefasto e agressor. É o tempo da
fantasia, das lutas e dos combates entre bem e mal. Brincar é a maneira que eles têm de elaborar a situação. Há de se explicar o momento por meio de fábulas, sem perder conta que as crianças nessa fase não são tão inocentes e têm entendimento relativo sobre a gravidade da situação. Parábolas, contos e lendas são as formas possíveis de entendimento para eles, não é necessário o confronto com a realidade crua.

Por outro lado, esse primeiro momento de ir à escola, relacionar-se com os amigos, confrontar-se com as regras sociais e entender que o mundo não é só constituído de “papais” e “mamães”, foi interrompido. A atividade física ao ar livre e o contato com a natureza também fazem
muita falta: entrar no mar, nadar, “suar a camisa” em atividades esportivas e lúdicas, sentir o vento no rosto nos passeios de bicicleta, o sol sobre a pele, além da falta das “lutinhas”, de andar “por aí” de mãos dadas e dos abraços com amigas e amigos.

Irmãos

Observo que a convivência com irmãos, apesar do possível aumento de conflitos, ajuda a experimentar a sociabilidade por meio das disputas, competições, cooperação e necessidade de conviver com o desejo do outro. Tenho observado irmãs e irmãos brincando juntos mesmo com grande diferenças de idade.

A falta de irmãos dificulta a socialização para os filhos únicos. Recolher-se ao trio mãe, pai, criança quando se está em plena descoberta de outras relações pode representar uma regressão a um estágio anterior.

Um passo atrás

Nesse momento de tensão, há também uma tendência de retomar comportamentos já superados como a enurese noturna (xixi na cama), tiques nervosos ou alguns medos antigos.

Esse movimento representa para a criança uma forma de lidar com tantas mudanças. É como um passo atrás para se proteger das pressões externas, recursos que devem ser acolhidos como etapas necessárias para a elaboração de tudo o que está ocorrendo.

É preciso também ter cuidado com a superexposição às notícias. Muitas vezes o aparelho de TV está no centro da sala, com as imagens mais
brutais, e crianças pequenas brincam ao redor. Se algum adulto ainda tem dúvidas de que essa exposição pode causar sérios danos às crianças, declaro aqui que sim.

Um novo entendimento

Dos sete aos dez anos, o entendimento dos acontecimentos a partir do pensamento crítico e de uma noção mais clara sobre os fatos pode aumentar a preocupação sobre a saúde dos avós e de entes queridos, porém os encontros virtuais costumam tranquilizá-los.

A saudade das amigas e dos amigos fica mais forte, as atividades em grupo e o convívio nos diversos ambientes faz muita falta. Porém, há um ganho importante em relação ao convívio familiar.
Em geral, por terem maior condição de participar das funções domésticas, podem colaborar mais efetivamente na casa. Gostam de se sentir úteis e participativos. É importante que suas colaborações não se restrinjam a arrumar os brinquedos e seu quarto, eles querem funções que sirvam ao grupo familiar.

Puberdade e adolescência

Na puberdade, as experiências relativas à sexualidade ficam superativadas. É o tempo de se colocar à prova a fim de mostrar-se “maior”. Há muitos medos e inseguranças diante das experiências propriamente ditas, uma ambiguidade enorme entre se lançar e recuar, sendo que, em geral, sentem-se impelidos a ir além do que podem.

As regras do confinamento criaram limites para as experiências reais. Isso acalmou muitos púberes que se impunham realizações “heroicas” nessa área. Poder estender o tempo da infância e da elaboração da ação dos hormônios caiu muito bem para muitos deles.

Para os adolescentes também há benefícios por conta da diminuição das demandas e das pressões dos grupos sociais nos quais estão inseridos ou desejam se inserir.

O mundo eletrônico e as redes sociais compensam a pressão dos excessos do estudo à distância e as restrições aos contatos presenciais. Os jogos on- line os colocam em contato com os amigos e, entre uma partida e outra, eles trocam ideias sobre o que estão vivendo na quarentena. Os que não se identificam como “gamers” encontram em outras plataformas virtuais modos de comunicação.
Embora muitos se mantenham “ensimesmados”, o momento de urgência e de sofrimento do planeta pode levar a interesses menos egoístas e fazer com que se percebam parte de um contexto maior.

A contestação característica dessa idade não deve ser suprimida e abafada. As discussões sobre a situação pode incluí-los na vida familiar, cívica e política.

Já os jovens na segunda fase da adolescência, dos quinze aos dezoito anos, encontram-se retidos pela quarentena em um momento no qual a vida
social tem grande importância. As baladas, os shows de música, os “esquentas”, a experimentação da sexualidade, a liberdade de deslocamentos, as viagens com os amigos… Difícil reter esse movimento que tem como essência a vida “fora de casa”. No entanto, a contenção dos excessos, como a exposição ao álcool, às drogas e aos comportamentos de risco, traz muitos benefícios, dá uma acalmada geral na “galera”.
Aqueles adolescentes com dificuldades de inserção nos grupos de amigos também se tranquilizaram, já que a intensidade da vida social diminuiu
para todos.

Por outro lado, nesse momento há a pressão do Ensino Médio, da preparação para o Enem e para os exames vestibulares, além do peso da
escolha da carreira.

A perda do último ano escolar para os que estão no terceiro ano é sentida profundamente pela incerteza de poderem realizar as viagens de conclusão de curso, as festas de formatura, as despedidas e os ritos coletivos de fechamento desse ciclo.

Além disso, os “terceiranistas” têm sobre si o peso do ensino à distância potencializado à milhão em função dos exames vestibulares. Encontram-se também pressionados pelas famílias que entendem que, já que estão com “tempo livre”, que usem esse tempo para se preparem para os estudos. Tempo livre ou tempo preso?

O fluxo da onda

É muito importante olharmos a adaptação a esses dois meses de confinamento como parte de um movimento maior, que inclui a introversão
e o recolhimento (como estamos vivendo agora), mas também o oposto: o desejo de expansão e de “ir para o mundo”.

No método de Cadeias Musculares GDS utilizamos a metáfora da onda para explicar a alternância saudável do desenvolvimento psicomotor. A
onda se enche e se expande e em seguida se enrola sobre si mesma e esse movimento é repetido continuamente.

Com meus pacientes tenho falado sobre a hibernação do urso durante o inverno, como uma metáfora, mas alguns já me perguntam como será quando o verão chegar.
Observo neste primeiro momento o aspecto positivo de acomodação ao recolhimento, mas isso não será sustentável por tempo indeterminado. À medida que o tempo passa o movimento de expansão começa a se impor e o ninho pode se tornar pequeno demais.

Estamos todos enfrentando o tema da resiliência, da capacidade humana de se recobrar diante de adversidades e de mudanças. A adaptação é uma parte dessa condição. A não aceitação e a oposição às restrições, também são reações possíveis à serem consideradas.

Podemos aprender sempre com os mais jovens.

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André Trindade

André Trindade é autor, psicoterapeuta e educador. Seu primeiro livro “Gestos de cuidado, gestos de amor”, trata do desenvolvimento do bebê ao longo dos três primeiros anos de vida. “Mapas do corpo”, seu segundo livro publicado, segue a mesma linha de orientações e reflexões, sobre a infância e adolescência.