Redescobrir o tempo com os filhos em tempos de Coronavírus

Redescobrir o tempo com os filhos em tempos de Coronavírus

É interessante observar como nós, como sociedade e humanidade, nos organizamos e acreditamos que realmente precisamos de coisas externas à nós para sermos felizes, para sermos bem-sucedidos ou termos bons desempenho frente ao grupo que pertencemos ou frente à nós mesmos. Afinal, crescemos e fomos educados a acreditar que precisamos ser bem-sucedidos em todas as áreas, incluindo a parentalidade. Ser bom pai ou mãe também está diretamente relacionado à forma que somos vistos na sociedade em relação a esse papel, o que se traduz na quantidade de atividades que oferecemos para as crianças atualmente. E se não oferecemos, somos questionados ou levados a acreditar que estamos um passo atrás da maioria das pessoas nessa corrida descontrolada da qual todos nós somos parte e responsáveis.

Porém, a vida nos surpreendeu com uma situação inédita: fomos levados a ficar em casa durante um período indeterminado e esse espaço precisou ser preenchido por algo novo: a convivência familiar durante 24 horas, pelo nosso próprio trabalho, as atividades e lições da escola, além dos trabalhos domésticos que costumamos fazer e o tempo, que nos oferece uma nova oportunidade de estabelecer outros tipos de relações com ele. A sensação, aparentemente, é de tempo suspendido, de tempo paralisado, de um tempo que está a parte de qualquer movimentação da natureza ou planetária. Um tempo que se suspende, um tempo que se verticaliza e que nos arrebata com a dificuldade em estarmos sós, em estarmos com as crianças durante grande parte do dia, em estarmos com as pessoas com quem mais temos intimidade, em estarmos conectados com a nossa intimidade e intuição.

Um tempo que nos amedronta, que nos assusta, e que nos faz repensar a questão do próprio ritmo familiar. Um tempo que nos leva a refletir sobre a falta dele e sobre a abundância dele, que nos aflige e nos comprime, fazendo-nos a correr para aquilo que estamos acostumados: se a escola não está oferecendo atividades, se as crianças estão em casa, se nós estamos aparentemente sem fazer nada, “ocupamos”, portanto, esse tempo e o preenchemos com incansáveis e intermináveis propostas de atividades que podem, talvez, substituir o papel da escola ou ocupar o tempo da criança enquanto ela fica em casa.

Na procura pelas atividades, nos perdemos. De nós mesmos e das crianças. Afastamos a chance de nos conectar ou de nos reconectar, de descobrir quem somos nessa relação de convivência 24 horas, 7 dias por semana e de descobrir quem as crianças são, do que elas gostam ou sobre o que elas se interessam. Eliminamos a possibilidade do ócio, da pausa, da espera ou do descanso, tão necessários à vida humana e que nos enseja a criar, a escolher, a descobrir nossas angústias, temores, alegrias, prazeres ou desprazeres. Eliminamos a probabilidade de aquietar e de sentir-se seguro em um espaço cuja função é exatamente essa: de trazer segurança, apoio e conforto. Banimos a chance de valorizar as vivências do cotidiano, que são experiências de aprendizagem e de fortalecimento de vínculo. Perdemos a chance de também entrar em contato com a maternidade ou paternidade reais, que estão distantes da parentalidade perfeita ou ideal que tanto imaginamos, relacionada ao bom desempenho exigido por nossa sociedade competitiva, mas que está muito mais próxima do ser humano que somos, repletos de defeitos e qualidades. Apagamos a rica chance que temos de nos autoeducar e de saber que trabalhar em casa é ser interrompido por mãozinhas que te chamam por debaixo da mesa ou por um desejo de um bolo de chocolate no meio da tarde.

As respostas sobre o que fazer com as crianças não está nas redes sociais que tanto recorremos ou na relação comercial a que submetemos, infelizmente, a educação. Elas estão dentro de nós mesmos e dessa relação íntima e singular que estabelecemos com cada um de nossos filhos.

Foto: Andrea Piacquadio

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Januária Cristino

Januária Cristino ( Janú). Pedagoga especialista em educação de crianças do nascimento aos três anos de vida pelo Instituto Singularidades, em São Paulo, e pós-graduanda em educação infantil. Coordenadora do Grupo de Estudos sobre a primeiríssima infância e pesquisadora do desenvolvimento infantil, neurociência, Pedagogia Waldorf e Abordagem Pikler desde 2010. Atua na formação de profissionais da primeira infância e orientação às famílias. Tem publicado especificamente sobre os bebês e as crianças bem pequenas em contextos coletivos e também em ambiente familiar em suas redes sociais. Está em formação pelo Instituto Pikler, em Budapeste, e é membro da Rede Pikler Brasil e Rede Pikler Nuestra America.