Eureka!!! Vamos brincar?
“Um menino nasceu. O mundo tornou a começar” [1]
Que criança precisa brincar é fato sabido. Teoricamente ninguém duvida disto. No entanto, longos anos de estudos são necessários para compreender o que é brincar, o que é brincar para a criança, como ela brinca e que benefícios “o brincar” traz para a humanidade, o desenvolvimento e a aprendizagem do indivíduo.
Para início de conversa, é importante entender que para a criança o brincar tem uma finalidade em si mesmo, não serve para isto ou para aquilo. Brincar é como respirar, sem esta possibilidade, é na capacidade para brincar que reside o ser criativo, pensante e social. O mundo nasce de suas criações.
A brincadeira é uma atividade espontânea, voluntária, livre, que nos acompanha, dando origem às diferentes formas expressivas, culturais e cientificas. Animais também brincam, mas falo deste brincar humano, que nos insere em um modo de vida pré-existente, a nossa própria cultura, mas ao mesmo tempo carrega todo o potencial transformador para inventarmos novos mundos.
A criança é por essência um ser que brinca
A infância é objeto de estudo da história, da sociologia, da antropologia, da psicologia, do direito, da pedagogia e abordada pelo viés de diversas temáticas como da violência, dos direitos, dos comportamentos, do brincar, da escolarização.
Fato é que diante de qualquer estudo que se faça, um denominador comum permeia todos eles: a criança é por essência um ser que brinca. No entanto, o fato de ter o brincar na sua essência, não significa que tem a brincadeira garantida.
A pedagogia pode reconhecer o valor do brincar para aprendizagem, a psicologia para o desenvolvimento emocional e a saúde mental do indivíduo, a antropologia para a ratificação da cultura, e a sociologia para constituição das relações. Mas para a criança, identifica-se o brincar como seu modo de ser e estar no mundo.
Compartilhamos da proposição de Schiller:
“O homem só é inteiro quando brinca e é somente quando brinca que ele existe na completa acepção da palavra homem”.
Portanto, transpondo de modo extremo esta afirmação para a criança, notificamos que a garantia dos tempos e espaços para o brincar da criança são a garantia da sua existência e do reconhecimento da infância.
Sumariamente podemos dizer, parafraseando Schiller, que a criança existe porque brinca, ou porque brinca pode existir em sua plenitude do ser (bio-psico-social).
Para Winnicott , brincar é em si psicoterapêutico, facilita o crescimento; (…) a saúde; o brincar conduz a relacionamentos grupais. Ele considera a brincadeira como algo natural e salienta que uma criança está livre para brincar quando encontra outra pessoa que está livre para ser brincalhona. O brincar não se encontra dentro do indivíduo, está fora, mas não é o mundo externo. A brincadeira é o espaço potencial da criatividade, do jogo e da fantasia e as experiências culturais estão em continuidade direta com a brincadeira. Neste sentido, brincar é fazer e fazer-se e, a realidade (cultural) alimenta e se alimenta da atividade de brincar.
Para Adriana Friedmann, o brincar cumpre um papel importante na formação e desenvolvimento dos indivíduos.
Quando há espaço interno, espírito lúdico interno, o espaço para o brincar acontecer no espaço externo surge de forma natural.
“Quando reflito a respeito de ESPAÇO penso, não somente no espaço externo, mas também no espaço interior de cada ser humano: o quanto estamos disponíveis internamente para deixar o brincar entrar nas nossas vidas. Penso tanto no espaço físico quanto no espaço no tempo, na vida.
A existência de espaços de brincar são importantes para:
- A socialização e troca entre os brincantes
- O desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e moral das crianças e jovens
- O estímulo da sua criatividade
- O despertar e o desenvolvimento dos seus potenciais e habilidades
- Tornar os indivíduos mais humanos
- Resgatar a essência e os valores mais significativos de cada um”[2]
Adriana Friedmann retoma a relevância da discussão sobre o tema do brincar, na atualidade, pois aponta para as transformações que este brincar sofreu ao longo da história da humanidade… Transformações estas, que muitas vezes comprometem a própria existência da brincadeira enquanto atividade educativa e essencial à infância: “As formas de brincar, os espaços e tempos de brincar, os objetos de brincar e os brincantes, foram se transformando” (Adriana Friedmann).
Atualmente, a raridade de espaços e tempos para o brincar, as modalidades e brinquedos produzidos pela indústria da criança, comprometem a infância substancialmente. A brincadeira é também um reflexo de uma sociedade consumista, cujo tempo, muitas vezes é vivido pela urgência das sobreposições sociais.
Se pretendermos humanizar as relações, se pretendemos tornar mais humana e inteira nossa existência, precisamos garantir às crianças o direito, os espaços e tempos para brincar, para crescerem e se desenvolverem na sua plenitude. Teremos então que vislumbrar nas crianças os espaços do resgate das tradições lúdicas da humanidade e ao mesmo tempo da criação de novas culturas, constituídas por sua participação, pela escuta de suas vozes, necessidades, urgências e declarações. Mais uma vez, é pelo brincar, pela expressividade da infância, pelas linguagens infantis que as vozes das crianças se fazem presentes. E para ouvi-las é preciso antes de tudo, escutar a criança que habita dentro nós, adultos comprometidos com a educação das novas gerações. A escuta de si é quase como uma empatia à presença do outro, no caso, das crianças.
Tempo: senhor do brincar
A falta de tempo é um dos argumentos para a redução da brincadeira infantil. Podemos validar este aspecto, no entanto, acreditamos que possuem origens mais profundas para o brincar rarefeito. É do lugar e do tempo para infância que estamos tratando. Isto implica em considerá-la nas suas características primeiras. Quando abordamos a redução da brincadeira, falamos de alguma maneira da redução da infância nos espaços públicos e privados, bem como nas famílias. Lugar de criança ficou praticamente restrito as instituições de Educação Infantil. O que não quer dizer que o brincar está garantido. Ou seja, ainda precisamos refletir muito sobre este assunto.
Nossas vidas urbanas, apressadas, consumistas nos afastaram da nossa própria natureza. O relógio passou a guiar o ritmo do dia a dia, artificializamos necessidades, e buscamos no consumo de produtos fabricados, a satisfação de desejos cuja origem essencial desconhecemos.
Entramos no supermercado empurrando um carrinho como se estivéssemos numa corrida cuja competição é conseguir coletar o maior número de produtos no menor tempo possível. Paramos para examinar os novos atrativos das prateleiras, nos deixamos seduzir com os apelos das propagandas e levamos para casa tudo aquilo que sacia nossa fome de ter. Provavelmente, o único empecilho para encher o carinho até o topo está no tamanho do nosso bolso.
Apesar da corrida, notamos que gastamos um bom tempo escolhendo a marca do sabonete mais cheiroso, a bolacha mais vitaminada e o produto com o brinde mais generoso. Voltamos tarde para casa, esbaforidos, tratamos de guardar as compras nos armários. Ao retomar a consciência, a escuridão da noite já se aproxima, e o final de tarde ocorreu imperceptível, dentro do supermercado e shoppings centers ambientados pelo ar condicionado e o aroma de essências climáticas jasmim, eucalipto, marine almíscar ou âmbar, ao gosto do freguês.
As compras roubam nossas energias, capturam as relações. Resta o tempo de ordenar aos filhos que tomem seus banhos e que comam a refeição, para depois… a melhor parte: se fartarem com a coleção brinquedos, cacarecos e de baboseiras adquiridas nas lojas e no supermercado. Instantes de felicidade comprada, de atenção compensada, de culpa aliviada, proporcionados pelo carrinho que apita, boneca que fala, pirulito que acende luzinhas, pelo sorvete com forma de chulé e pelo novo iogurte com bolotas que explodem no contato com a língua.
Crianças felizes, hora de dormir!
Pela manhã, o som fenomenal do despertador. Eletrônico. Moderno. Digital. Não perturba o sono com o obsoleto tic-tac, não acorda com o estridente trim… trim ….. Eficiente pi…pi…pi… Ainda lembra que é segunda-feira. Stop, finish, off-line lazer. Lazer? E que lazer!!!
Hora de o adulto ir ao trabalho, labuta para receber o dinheiro que paga a felicidade encontrada no pirulito frenético, no biscoito vitaminado e na roupa que imita os modelitos para adultos da última moda.
Criança vai para a escola para aprender?
Aprender… Aprender o quê? Que vivemos contra o tempo, que nascemos para consumir, que a felicidade está num pedaço de doce propagandeado? Que nossa existência pertence a um bocado de coisas que juntamos sem sentido algum, que esperamos que se tornem adultos o quanto antes e que nossas relações são pautadas na capacidade de se sobrepor ao outro pela quantidade de status comprado?
Preferimos acreditar que não é essa a vida que sonhamos para nossos filhos, para aqueles que herdarão o futuro e o compromisso de fazê-la melhor. Se assim acreditamos então está na hora de dizer um basta para estas coisas desvirtuadas da nossa essência de ser.
Precisamos caminhar na direção de uma experiência educativa que supere, como única alternativa uma existência material. Algo que caminhe na construção de um ser que transcende sua constituição somente enquanto ter. Dotada de valores formativos que respeitem a infância e suas premências, numa sociedade que considere as crianças na sua inteireza, igualdades e diversidades, e que lide com as oportunidades de modo mais criativo e democrático.
Por fim, precisamos formar um contrapeso em relação a pressa, ao consumismo, aos estímulos precoces dados às crianças, ao excesso de conteúdos disciplinares e transmissivos da escola como ela é hoje. Precisamos dar tempo ao tempo para a criança ser criança!
Por fim, voltando ao início, que criança precisa brincar é fato sabido. No entanto, longos anos de estudos são necessários para compreender:
O que é brincar?
O que é brincar para a criança?
Como a criança brinca?
Quando nasce a brincadeira?
Qual é o papel do adulto na brincadeira da criança?
Quais são os tempos e espaços da brincadeira? E os materiais? O que é um brinquedo adequado para a criança?
Os bebês brincam?
Eureka! Vamos investigar estas e outras questões que não se esgotam por aqui.
Fotos de Pedro Bonacina
[1] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
[2] FRIEDMAN, Adriana. Linguagens e Culturas infantis. São Paulo: Cortez, 2013
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Tânia Fukelmann Landau
Adulta e brincante, gosta de estudar e escrever. Lê muito e estuda tudo o que diz respeito a infância, criança e educação. Tem se dedicado a formação continuada de educadores e a cuidar de quem cuida. Viveu e ainda vive com pé no chão da escola atuando como professora, coordenadora e assessora pedagógica. É fundadora e diretora da Converso Educação, instituição de curadoria e assessoria pedagógica que inclui uma livraria especializada na área. Formada em pedagogia pela PUC-SP, com especialização em Educação lúdica pelo ISEVEC. Membro atuante da Rede Pikler Brasil.